Trilha Sonora



Conceito:


Criar uma ambiência sonora para uma história/trajetória tão dura e dolorosa foi/vem sendo uma tarefa difícil e trabalhosa. Condensar sentimentos e situações em imagens sonoras. 

Desde a pesquisa passamos por tantos territórios musicais para chegar nesta babel de melodias e ruídos. 

O peso da dor de se deixar para trás toda sua história e iniciar cada dia uma nova vida em um ambiente hostil. A loucura da incomunicabilidade. A saudade do conforto e carinho da casa. O instinto de sobrevivência, perseverança. Privações, desespero. Foram estes os elementos que saltaram, dentre tantos outros, criando uma espessa camada de sentimentos e ideias, que foram transubstanciadas em forma de música.

A escolha do uso do arco trouxe um novo uso para o violão de 12 cordas e demais instrumentos de cordas utilizados nas gravações. As texturas buscadas e atingidas por este recurso economizaram em muito a quantidade de efeitos e de instrumentos virtuais no estúdio. A mistura entre partes pré-gravadas e executadas ao vivo traz um frescor a cada nova execução da trilha.


Segue um registro das experimentações no 2k Estúdio:



Processo: 
[navegue clicando nos links para ouvir as referências sonoras da peça]

Na fase de pesquisa, a diretora Cristine Conde trouxe algumas referências sonoras à partir do tema central da peça: o êxodo: antigo e atual. A pulsação e o sofrimento da músicatradicional judaica e texturas mais modernas com a músicapop e hip hop fizeram uma mistura entre a ancestralidade e o hoje.  Em dado momento no processo, Carmen Jorge, uma amiga e colaboradora neste projeto, nos chamou a atenção para a trilha sonora do filme BladeRunner, que estava em cartaz nos cinemas na época, com relação ao peso das texturas e ao tipo de ruído produzido pelos sintetizadores.

Nos primeiros ensaios, começou com violão de nylon acústico mesmo, sem nem amplificar, acompanhando os movimentos da Fabiana e tentando criar sons aleatórios e conectando com aquele início de criação, junto com algumas referências sonoras passadas pela Cristine, que foram aos poucos ganhando alguma forma ao violão.

Resolvi então trazer do meu estúdio um monte de coisas: violão de 12 cordas, guitarras, amplificador, todos os meus pedais, mesa de som, arco, slide, gaita de boca, instrumentos de percussão, escaleta.

Foi bem interessante. Eu achava que precisaria usar um monte de fuzz para adicionar ruídos ao som, e no fim fiquei só com o tubescreamer e o mega distortion, pois os ruídos que eu queria consegui tirar tudo com o arco. O arco trouxe uma gama de texturas cheias de ruído e sujeira, além de facilitar tocar todos os harmônicos ao longo das cordas.

E a partir dos ruídos do arco comecei a explorar outros ruídos no violão de 12 cordas e misturando com os efeitos de modulação, tremolophaserchorus e o coringa ultrashifter harmonizer, que uso várias regulagens diferentes dele na peça. Para encorpar a babel de ruídos, adicionei o pedal de loop para poder sobrepor as camadas de sons.

O trabalho que a Edith de Camargo fez com a Fabiana também foi muito importante no desenrolar da trilha. Durante o trabalho de preparação vocal, elas foram desenvolvendo os cantos presentes na peça, que encaixaram como uma luva na textura áspera da trilha, trazendo um elemento visceral e humano, forte e sensível.
Edith, além de preparadora vocal também é compositora, já tendo feito a trilha de diversas peças de teatro ao longo da sua carreira. Foi muito bom poder contar com ouvidos musicalmente treinados para fazer pontuações mais técnicas. Desde a regulagens de volume até questionamentos sobre a harmonia ou efeitos de algum trecho, as pontuações dela sempre foram instigadoras e me ajudaram a ter mais certeza daquilo que estava fazendo.

A primeira fase de ensaios foi de outubro a dezembro de 2017. Ao final desta parte já tínhamos um bom esboço do que seria a peça. Com relação à trilha, havia alguns ajustes a fazer.

Ao longo dos ensaios o pedal de loop foi se mostrando arriscado, visto que tudo poderia 'dar errado' se desse um clique fora de tempo no pedal. À partir disso, resolvi que algumas camadas que utilizava no loop deveriam ser gravadas em estúdio e executadas como sampler, me deixando mais livre para preencher com as outras camadas ao vivo.

No período de  recesso entre as duas fases dos ensaios eu tinha uma missão: ir para o estúdio e gravar o máximo de material que pudesse utilizar na segunda fase, e isto incluía a 'faixa final'.

A famosa 'faixa final' merece um capítulo à parte. Durante a primeira fase de construção da peça, a cena final foi a única que não chegou a ser trabalhada a fundo, sendo deixada para a segunda fase. Ela representa uma ruptura, uma libertação de tudo que a personagem vivenciou até aquele momento. Nos ensaios eu havia criado uma música que era uma sobreposição de camadas com um pouco de cada música desde o início até lá criando uma massa sonora difusa, o que não encaixava na lógica de ruptura. Ao final desta parte do processo fiquei encarregado de criar uma nova música, diferente de tudo que havia feito até então. Ficou combinado que tentaria trazer pelo menos três versões da faixa final.
A Carmem Jorge me passou duas bandas como referência: Mogwai e Ruído/mm. Estes dois sons bateram na minha cabeça e me trouxeram diferentes ideias.  Na hora me veio na cabeça uma melodia de uma música do meu parceiro musical de longa data, Paulo Reis. Se tratava de um tema ainda sem letra e sem nome (Instrumental Nº1) que ele havia me mostrado durante a pré-produção do seu novo disco. Fiquei com esta carta na manga e parti para SãoFrancisco do Sul, no 2kEstúdio, do meu amigo e produtor Kelwin Grochowicz, para iniciar esta árdua tarefa. Eu tinha cerca de 20 dias para gravar tudo que pudesse e trazer algumas opções de trilha pra cena final.
Iniciei gravando os arcos e algumas bases que já fazia nos ensaios, enquanto esperava o espírito criativo dar as caras. No natal fui presenteado pelo meu irmão, Rogerio, com o último CD do músico gaúcho Vitor Ramil, do qual sou fã. Uma das características do trabalho de Vitor é o uso das dissonâncias dentro da canção. Este disco chamado "CamposNeutrais" traz dentre suas faixas uma especial, que trouxe um elemento importante para esta faixa final do Kaza. "Palavradesordem" tem uma conexão interessante entre a sessão rítmica, a guitarra e a melodia, alternando entre uma parte cheia de quebras e com pouco preenchimento rítmico e outra mais pulsante e preenchida, me remetendo ao clássico do PinkFloyd, Atom HeartMother. Chegamos até em cogitar a utilização desta faixa (Palavra desordem), mas o fato dela ter uma extensa letra (maior que o texto todo da peça) foi logo nos retirando esta ideia da cabeça. Decidi então fazer uma música que tivesse um pouco de cada um destes elementos e ao mesmo tempo fosse o que o espetáculo precisava.
Gravei uma levada gravada com o arco no violão de 12 cordas para, em seguida, adicionar outras texturas e músicas incidentais, quase como num Frankenstein sonoro. Foram alguns dias de gravação, entre cordas e percussões. Não funcionou. A música ficou arrastada e sem a pegada necessária para a cena.
Neste momento, dúvidas começaram a povoar a minha cabeça. Minha aptidão para compor uma música sob encomenda, com prazo e tendo que agradar outras pessoas e não somente a mim estava em cheque. Havia tentado desenvolver algumas ideias, mas nada que fosse realmente forte.
Neste período, aproveitando que estava no estúdio e com meus parceiros Kelwin e Paulo, fizemos algumas jamsessions de umprojeto sonoro em que simplesmente improvisamos, sem regras. Simplesmente o que vêm à mente. Como de costume, estes encontros sempre são gravados. Boas ideias sempre aparecem dessas jams e temos a liberdade de trabalha-las como bem entendermos posteriormente. Como um grande banco de ideias musicais. Umadas gravações deste período em que estava gravando também foi destacada comouma opção para a faixa final.
Mas ainda faltava alguma coisa. Neste momento eu já estava a ponto de arrancar os cabelos e pensando que utilizaria a música do Paulo. A Fabiana, que estava acompanhando o processo todo, me puxou de lado e disse para eu acreditar no meu potencial e compor esta faixa. Ela me lembrou de uma melodia que havia tocado no violão de 12 cordas, porém não estava gravando e não me lembrava direito. Por sorte tinha uma filmagem em que toquei um trechinho do que lembrava desta melodia e que pude utilizar como ideia de movimento, juntando com as memórias. Assim estava nascendo "Caminhar é Resistir".
Iniciei gravando o violão de nylon, fazendo a base e ditando o ritmo da música. Depois veio o violão de 12 cordas preenchendo de harmônicos seguido do contrabaixo, desta vez tocado sem o arco para conseguir marcar bem a pulsação e dar peso. Depois veio a bateria, gravada com apenas 4 microfones para utilizar a ambiência da sala e o som da bateria como um todo. Com a base principal da música já definida foi a hora de sujar de ruídos, utilizando uma chave de fenda junto às cordas do violão de 12 cordas. Durante as gravações da trilha teve um momento em que a Fabiana gravou os nomes de refugiados que morreram durante as suas trajetórias de fuga, no mundo todo.  Nesta ocasião, inserimos alguns dos cantos trabalhados com a Edith nos ensaios nesta faixa. Resolvi levar a Fabiana novamente para o estúdio para gravar mais alguns cantos, desta vez para "Caminhar é Resistir". Ao escutar a faixa, a Fabiana comentou que estava sentindo falta de uma guitarra. Na sessão seguinte foram adicionadas diversas camadas de guitarra, com timbres diferentes, bases, solos e ruídos. Foram gravadas também mais faixas de percussão: caxixi, pau de chuva, chocalho, pandeiro e triângulo. Depois de mixar as mais de 30 faixas, ao ouvirmos tivemos uma certeza: estava pronta a música da cena final!

Com a sensação de dever cumprido, voltamos para Curitiba para fase final de ensaios. Agora eu tinha que mesclar as faixas gravadas com o violão de 12 cordas que eu iria executar ao vivo. Uma outra diferença: na primeira fase de ensaios eu montava meus equipamentos na plateia do Espaço Excêntrico, local onde ensaiamos e apresentaremos a peça. Porém já sabíamos que não teria a possibilidade de eu tocar na plateia durante a temporada, por todos os problemas que ocupar e dividir espaço com o público podem trazer. Com isto ficou decidido que eu tocaria na sala onde ficam os equipamentos de som e luz. Tanto a visão que eu tinha das cenas acontecendo, quanto o que eu escutava da trilha mudou drasticamente. Na primeira semana me ative a tentar resolver os problemas decorrentes desta mudança. Montamos uma espécie de picadeiro onde eu fico com meus equipamentos todos à disposição, tendo uma vista parcial das ações, e com os ruídos das potências de luz e som ao lado do meu ouvido.
Enquanto habituava meus ouvidos às novas condições, fui tratando de botar em sincronia as gravações e o ao vivo. Fui percebendo a necessidade de gravar mais algumas coisas.
Quando estava na praia, minha prima Larissa trouxe junto com ela um instrumento chamado disco soador que, por coincidência, é produzido por um conhecido meu deMariana MG, Tico Alcântara. Ao escutar o som celestial do disco soador, na hora pensei em utiliza-lo na trilha do Kaza. Porém minha prima já estava voltando para o Rio de Janeiro e não tive tempo de gravá-lo no 2k Estúdio. Assim, lá fui eu na internet comprar um disco soador para mim, pois não conseguia mais ver sentido na vida sem um disco soador. Alguns dias (e muita correria) depois, quando cheguei em casa em Curitiba lá estava a caixa com o meu disco dentro. Já havia tido algumas ideias na praia com o disco da minha prima, e logo estava gravando em casa alguns temas para a peça.
Nos ensaios seguintes a tarefa foi de 'automatizar' a execução da trilha ao vivo, as gravações, as regulagens nos pedais, os volumes dos áudios e a transição entre som e silêncio e entre as faixas. 
A estreia aconteceu no Espaço Excêntrico, em Curitiba. Foram 20 sessões para adolescentes alunos de escola pública, professores, além de amigos, parentes e demais público. 

Assista ao vídeo do espetáculo:


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